domingo, novembro 11, 2007

Háguas

De dentro da escuridão passos largos caminham,
mas olhos espreitam os movimentos noturnos:
um mundo cruel, tribal, desigual, escatológico,
onde ódios ancestrais dominam a não-convivência
e fazem dos longos dias arremedos de existência
onde a luta constante pelo encontro com a sorte
é a ponta perceptível de razão para ilógico caos.

Os seres divididos entre répteis e qualquer gente
humanos, desumanos, sobrehumanos, de repente.
Criados nos minúsculos guetos sob luzes opacas,
lume de cores sombrias, de forte cinza e negror,
em que gosmas voláteis, deslizam toda a matéria,
unindo o resto de vida com o entulho da hecatombe,
fazendo das ruínas ecléticas de outrora cidades,
habitação peremptória dos frágeis remanescentes.

Brutazé caminha por longas ruas empoeiradas,
fétidas e esburacadas, habitat de ratazanas e afins
levando nos neurônios antigas paisagens e sonhos
que ele descobriu nos monturos de um escritório
datado pelos antepassados como século XXII.
E traz registrada na retina dos olhos e da vida
a esperança do encontro com a sua bela querida
pra começar um novo tempo, de uma vida a dois.

Caminha Brutazé tendo os sonhos sempre presentes
vontade soberana de logo achar uma segura saída,
a porta tão esperada que solene há de conduzi-lo
do caos apocalíptico ao desejado Paraíso terrestre.
E seus passos firmes marcham resolutos sob olhares...
dos quais ele não duvida nem por eles se intimida.
Pois o poster do Paraíso, da amada que o conquistou
parece pregado em sua testa, e ele caminha-bandeira.

O grande sonho de consumo dos seres de Caoticalândia
se resume na visão de Brutazé: encontrar a fonte d’águas.
De há muito somente a memória tem algum registro
de atos humanos de fazer aparecer água em torneiras;
dar mergulhos e similares; fazer jorrar de mangueiras
jatos que molhem a terra, que banhem todas as gentes,
que refresquem a alma e assim produzam algo de paz.
A humanidade agonizou na escassez de água potável...

Demorou séculos para o homem descobrir o valor
do petróleo branco, de tessitura fina, translúcido,
inodoro, palatável, qual fortuita amante desejável.
Tão distante, escondido, raro e imprevisível de achar.
Mas no meio do chorume azedo do lixo cósmico
baba estelar que escorrega por entre a existência
atormentando as ruínas da civilização ocidental
Brutazé caminha com seu sonho e carrega-o apertado.

Os passos do “andróide” arrastam séculos de omissão:
a humanidade ignorou os avisos da mãe natureza
e os lançamentos de esgotos domésticos nas correntezas,
os efluentes industriais e o irado consumo irracional
cuidaram de fazer o resto: acabar com o líquido vital
que recobria o feto-planeta e o fazia sentir-se seguro.
Brutazé e os seus contemporâneos já não pensam
apenas pisam forte a caminhada da sobrevivência.

Se no agonizante mundo onde moram os caoticalandenses
a vida é mais animalesca, instintiva, numa luta primacial
pela conquista do espaço e manutenção de seu território,
nada como repensar que o passado poderia ter reservado
presente melhor não fôra a diminuição e a vil degradação
dos mananciais e corpos hídricos - e isto é bastante notório -
a destruição da cobertura vegetal, das bacias hidrográficas,
das florestas e das matas ciliares: já nem penso em pomares...

Brutazé caminha resoluto buscando agora outros ares
ouvindo ecoar em seus ouvidos os gritos do passado
emitidos pela garganta da pobre mãe natureza
rica pela beleza, mas assim como animal dominado
sem até poder reagir, a não ser pela atroz alteração
de idílicos e bucólicos cenários em áridos e inermes
campanários que já não tocam mais canções neste deserto.
De certo que o homem não ouviu ecoar esses gritos...

O grito gutural avisa que a água não é recurso ilimitado!
Mas parece que o homem nunca o quis de fato ouvir
e no ser em que se transformou após séculos de omissão
resta pouca esperança para regar o não-jardim da vida.
Oceanos salgados foram tragados pelo sideralmoto
que assolou a Terra tornando-a um amontoado de barro
retorcido junto aos artificiais mecanismos construídos
pelos habitantes do planeta, ao que chamavam de tecnologia.

Bilhões de seres dormiam muito mal em priscas eras
assustados pela insônia cruel de acordar e desaguar,
desandar, escassear, secar e assim não mais existir:
o banhar silente de um corpo nu em águas límpidas
ou a boca molhada e a sede saciada em um copo gelado.
Mas agora apenas centenas de remanescentes se escondem
em trincheiras de monturos, refúgios subterrâneos,
onde macho e fêmea raro se encontram e não há água.

Não há escapatória! A falta de água e a inexistência de amor
hão de zerar por completo as estatísticas da presença humana
e nesta corrida aturdida em que a competição idiota e insana
exalça o indivíduo e aniquila o coletivo, não se chora pela dor
mas numa compensação macabra, que o homem não sabe fugir
já não se vê sorriso, nem brilho nos olhos, em nenhum lado
não há juras de amor, carinhos, afagos e sonhos para o devir
a escassez é tamanha que até extinguiu o beijo molhado...

Lá se vão mais de cinco horas que Brutazé caminha disposto.
Rompeu monturejos e ruílas de destrocasas e choupamentos;
avistou femegentes e antropovermes por meio de olhos agudos;
pisoteou carcaças e ossaturas de vencidos da sequidão de estio;
mas em nenhum momento abandonou a miragem de seu oásis -
mesmo que um particular oásis de um sonho de poster antigo -
porque possuía um sentido de continuação, uma busca pela vida:
Fizera a despedida do presente e buscava no passado o futuro.

O chão de terra batido de há muito tinha sido dominado
pelo câncer da Terra, que consumia o resto de vitalidade.
E a lepra terranosa que assolava a superfície, esfarelava
em camadas gangrenosas à passagem dos seres ousados.
Brutazé, por onde andava, deixava um rastro de esperança
em marcas de desconstrução da matéria e ereção da vida.
Determinado, caminhava ignoto, solitário e arrastando
as asas de um grande pássaro - tecnonavessauro - branco.

A sua caminhada denunciava a posse de um grande sonho
ainda que seu mundo se constituísse de cenário dantesco
de caos e destruição e guardasse de perto um parentesco
com o Inferno já descrito magistralmente por um estranho.
Célere em seu avanço, Brutazé anda sobre os retorcidos
atalhos das ruínas tecnológicas, avesso ao que não fosse,
para que em sua busca, eliminando os falsos e parecidos,
em breve pudesse encontrar com a doce amada e doce...

Após dias de caminhada inglória, já euxarido e tristonho
- embora seus olhos brilhassem mais do que uns cometas -
Brutazé se depara com algo que lhe chama a atenção:
um veio intermitente de folhagens verdes, pontiagudas,
que até então lhe eram desconhecidas e sem ter registro.
Mais que isto: a curiosidade multiplicada por sua ânsia
o fez deter-se em sua busca colossal naquela instância
a fim de averiguar se seu sonho vestiria asas de realidade.

Entrando por uma caverna de pedras, paus e escombros
esfolando os seus membros: pernas, pés, braços e ombros
Brutazé aventura-se entre brechas e fendas apertadas
seguindo a intuição repentina de que encontraria a amada.
Subindo e descendo, caminhando por entre as trilhas
a esperança renovada e as pistas seguindo no chão molhado
ele via a mutação do ambiente em derredor e sabia que algo
de bom iria lhe acontecer: Bastaria para tanto aguardar...

Quando de repente, num denso vale escondido da superfície,
um platô de verde e vida se descortina ante seus atentos olhos -
incrédulos olhos de coruja humana desacostumada com a luz -
Brutazé apressa os passos e extrai forças do nada para as águas,
abundantes águas que vicejam de entre lagos azuis em fonte,
em direção ao leito que lhe acolherá como o colo de mulher
e ele envolvido dos cabelos aos pés por aquela forte sensação,
no toque de seu corpo cru, rachado, em epiderme grossa e seca.

As águas recobrem o corpo de Brutazé aninhando-se no mergulho
e o choque do corpo contra o espelho d'água cria desenhos sutis
de águas que se esborrifam contra pedras e refletem a tênue luz
invasora do ambiente pelas frestas das árvores e dos tempos.
Agora, de dentro d'água, apressadamente livra-se dos farrapos
pois quer ter seu corpo livre para sentir o encontro com as águas.
E o beijo molhado da amada água toma de assalto o corpo inteiro
numa sensação não vivida, mas que a esperança confirmara possível.

De dentro do Grande Lago, Brutazé levanta os olhos ao derredor
para checar se o que vivia naquele instante era sonho ou realidade.
Tem, então, uma esplêndida visão de árvores prenhes de frutos:
coloridos e multiformes frutos que traziam-lhe às narinas seu odor.
E ele tem plena consciência de que a sua civilização de nada sabia
e que a incansável luta que encetara convicto desde a sua mocidade -
pela descoberta do Paraíso das Águas - agora chegara ao seu fim.
As águas traziam vida e com ela a esperança e, quem sabe, o amor...

Naquele instante o corpo pesado e cansado de Brutazé desaparece.
Não encontra chão e num desespero cresce o volume de águas -
estabanadas águas abatidas entre braços e pernas desgovernados.
Não se preparara para o desconhecido sendo tragado pelo desejo.
É o fim. Quem sabe, não? Uma bela femegente adentra o santuário
e contempla os últimos instantes do amado que se esvai sob as águas.
Não sabe o que fazer, nem por onde começar. Apenas uma lágrima.
Na Casa das Águas uma lágrima encontra forte razão pra nascer...

Brutazé deixara pra trás um coração apaixonado, agora partido.
E após ela, - mais um e mais um - invade o recinto sacrossanto,
promovendo um encontro dos remanescentes no Lugar da Utopia.
E agora há um encontro de todos com o passado e com o futuro.
Em sua longa caminhada, ele deixara um rastro de possibilidade
e despertara antigos desejos e sonhos adormecidos se acordaram
e os passos de Brutazé nos cancros da Terra soaram qual tambor
avisando a chegada da Amada e a possibilidade de um Novo Tempo.

(Comecei às 7h25m de 01/03/2001 e terminei às 7h45m de 13/03/2001).

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